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A beleza e os monstros

Onde é que se disse que “o filme sempre foi colorido, o mundo antes é que era a preto e branco”? Vi Let’s Get Lost, documentário de 1988 sobre e com Chet Baker. Pretos e brancos pesados, com grão lindo, à Magnum. Pessoas erradas, lugares marginais: gosto, principalmente por ser o mundo daquela virada preciosa em que fui de criança a adolescente. Aquele último momento antes de uma vida inteira. Nos anos 90, as roupas ficariam mais confortáveis, a Guerra Fria acabaria, os independentes emergiriam. Tinham nomes como “Miramax” e “Terceira Via” e muito de mentiroso, mas, naquela altura, ainda só pareciam promessas de ventos novos.

A voz e o trompete de Baker, ainda hoje, têm poderes. Invocam algum clube pequeno e apertado. Quatro músicos a tocar, bebidas simples sobre mesas pequenas, corpos pulsando com o swing da música num mesmo movimento. Uma espécie de oração num outro tipo de igreja. Tempos sem preocupações com metanol ou com epidemias nos rostos próximos.

Mas Baker era todo das contradições. Criador extraordinário e magnético, pai ausente, companheiro tóxico. Frágil, manipulador, vulnerável. Dependente, egocêntrico, ferida aberta. As pessoas apaixonavam-se por ele como se fosse droga. Ele tomava heroína, as mulheres tomavam Chet Baker. Disputavam-no, atacavam-se pelo seu afeto. Como nuvem carregada, apaixonar-se por ele implicava aceitar uma vida na sombra constante do mau tempo. Mas, quando aquela voz subia, quando aquele trompete acordava, tudo mudava, ainda muda.

Isto é separar a arte do artista? Talvez seja o oposto. Há semanas, Nick Cave disse assim, referindo-se a Kanye West (tradução minha):

Quero desafiar a noção de que podemos separar a arte do artista. (…) Um artista e a sua arte estão fundamentalmente interligados, porque a arte é a manifestação da essência do artista. Uma obra proclama “Este sou eu. Estou aqui. Isto é o que sou”. Porém, a grande dádiva da arte é o potencial para o artista escavar o seu caos interior e o transformar em algo sublime. Isto é o que Kanye faz. Isto é o que eu tento fazer, e esta é a empreitada a que se prestam todos os artistas genuínos. A notável utilidade da arte reside na audácia com que transfigura o nosso estado corrupto e cria algo verdadeiramente belo.

Ser espectador é um processo complicado, mas acho que estas palavras iluminam um pouco da complicação. Entre rejeitar a criação ou fechar os olhos às falhas de caráter do criador, Cave apresenta uma terceira opção: é incrível que a beleza emane de monstros, e é legítimo apreciá-la também por isso.

Eu sei que isto não serve para todas as situações. Nem tudo é “beleza” e nem todos os monstros são iguais. Se os defeitos da pessoa dão sabor amargo ao que ela faz, não somos obrigado a engolir (até porque é muito polémico que, com arte e entretenimento, sejamos obrigados a seja o que for), nem a fechar fileiras nos exércitos binários das discussões online. Mas também é verdade que não é artisticamente que se gosta de alguém e não é eticamente que se gosta de uma obra. Todos os dias, resolvemos uma equação em nosso olhar, e ela reflete as sombras na nossa frente. As pessoas erradas, os lugares marginais.

Afinal, talvez o mundo nunca tenha sido a preto e branco.

ilógico é um lugar inventado por Jorge Vaz Nande.
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