Umas férias
1
Primeiros dias de Dezembro. Aterramos em Vigo para passar as festas na casa dos meus pais, mas uma das malas não veio. Era a que tinha o secador de cabelo da minha mulher, as suas bolsas, os seus sapatos.
“Levamo-la amanhã à sua casa em Portugal”, disseram no aeroporto, e que estivéssemos atentos, porque o entregador ligaria antes de aparecer. Mas não veio ninguém no dia seguinte. Telefonamos, e disseram-nos para esperar 72 horas. Depois das 72h, disseram para esperar mais um dia, e depois mais outro, e ainda mais outro.
A dada altura, confirmaram-nos que a mala estava, sim, no aeroporto, e aproveitamos uma ida a Vigo para tirar satisfações. Uma funcionária pediu-nos imensas desculpas. “O entregador veio buscá-la no início da tarde. Deve levar-lha amanhã! É de certeza! E não precisa ficar o tempo todo em casa, porque ele vai telefonar antes”.
O entregador só apareceu depois de mais três dias. Foram onze, no total. Não ligou antes.
2
Eu e a minha mulher, que só tinha um par de sapatos e estava sem secador, fizemos uma viagem curta por Portugal. Enquanto lhe explicava que o relógio da torre da faculdade de Direito de Coimbra — a famosa “Cabra” — era conhecido no século 19 por sempre atrasar quinze minutos, reparei que o meu relógio também estava atrasado. Um presente de Natal para mim mesmo, acabadinho de chegar da França. Que tristeza.
Passei o resto da viagem lendo as horas no telemóvel e os dias seguintes combinando com o vendedor uma troca antes do meu regresso, porque ele não faz envios para o Brasil. Diga-se que ele foi excelente, e logo me mandou uma etiqueta para eu lhe devolver sem custo o espécime defeituoso.
Só foi preciso viajar 40km, porque a transportadora não tinha postos que fizessem esse serviço na minha terra natal.
3
A internet lá em casa estava a oscilar muito, e a minha mãe agendou uma visita técnica. Uns dias depois, telefonaram-lhe da operadora e fizeram um reset remoto ao modem. Depois disso não conseguimos ligar mais nada ao wifi.
Contatamos o apoio ao cliente, mas, entre “liga” para aqui e “desliga” para ali, entre “password” pra cá e “reset” pra lá, a mulher não resolveu nada. No fim, só deu um bónus de dados aos telemóveis dos meus pais e prometeu adiantar a visita técnica. “Vai ser hoje mesmo, talvez amanhã”. Mas, meia hora depois, chegou um SMS dizendo que a visita seria no 6 de Janeiro. Ou seja, mais de uma semana sem wifi. “Pagamos-lhes tanto, e é assim que nos tratam?”, disse a minha mãe.
Liguei outra vez para o apoio ao cliente. Uma funcionária mais esclarecida explicou-me que, ao resetar, o modem voltava para a password de fábrica, que estava escrita na plaquinha que ele tem no fundo. Experimentei colocá-la. Não funcionou, mas algo me intrigou: por que é que o wifi não funcionava, mas a televisão por cabo - que usa o mesmo modem - sim? Ou seja: a torneira do wifi podia estar seca, mas havia internet neste cano.
Usando um portátil velho, com entrada LAN, recuperei a password antiga e coloquei a rede num canal menos congestionado. A internet não voltou a oscilar.
Por que a operadora nos cortou o acesso ao wifi? Por que o roteiro do apoio ao cliente não tinha esta solução simples contemplada? Quando é que se tornou admissível para uma empresa receber por um mês de produto e entregar três semanas? Estou até agora sem saber.
4
Talisca, a cadela mimada e acarinhada pelos meus pais por uma década. A gordinha que comia tudo o que lhe davam, que avisava quando o telefone tocava, que estava sempre perto dos seus donos para lhes sacar um sorriso, que protegia a gata Janita desde que esta chegou pequenina e amedrontada. Talisca, que me vinha dizer olá sempre que eu chegava de férias e que adorava quando eu lhe fazia festas no lombo enquanto lhe chamava “minha amiga”. Talisca, a quem nos últimos anos cresceram grandes tumores nas pernas, que ela carregava para cima e para baixo das escadas como se não importassem.
Talisca pareceu bem e animada durante todo o mês de Dezembro, até ao dia em que engoliu uma grande peça de pão mofado que roubou de cima da mesa e ficou quieta de uma forma que não lhe era costumeira. Quando voltamos à noite, vimos Talisca beber água e, pouco depois, vomitar no chão. Terá sido o pão mofado, pensamos.
Talisca saiu para o quintal. Antes de me ir deitar, fui vê-la. Reparei que ela não estava abrigada do frio gélido da noite, mas sentada no jardim, por entre as plantas, enquanto gania baixinho. Avisei o meu pai, que estava a ver televisão.
Pouco depois, ele veio dizer-me que Talisca tinha morrido, na cozinha, enquanto ele e a minha mãe a acarinhavam e choravam. Antes de morrer, ela levantou o focinho e olhou-os, assustada e perdida, como se reconhecesse o grande mistério e abismo da fronteira que pisava.
Teria sido o peso excessivo, os tumores, o pão bolorento, o frio? Talvez todos eles. Ajudei o meu pai a carregá-la para baixo. No dia seguinte, enterrámo-la.
Talisca, a alegre. Talisca, a querida. Talisca, o coração que bateu cheio de amor até à madrugada do 30 para 31 de Dezembro de 2024. No réveillon, brindamos à sua memória e abraçamo-nos.
5
É suficiente uma hora para trocar de aviões em Barajas? Pelos registos dos voos anteriores, tudo parecia bem, mas no dia em que viajamos, claro, tinha que vir ao mundo um ataque de mau tempo para atrasar a nossa saída de Vigo, e chegamos a Madrid só dez minutos antes do fim do embarque para São Paulo.
Já estava a considerar marcar um hotel para passar a noite, mas, quando saímos da manga, uma funcionária de walkie talkie perguntou-nos qual a nossa conexão. Eu disse “São Paulo”, e ela gritou, “rápido, para a zona S, apanhem o trem!”.
Eu e a minha mulher atravessamos o aeroporto a correr, mas acho que o esforço misturou-se com os vaivéns das semanas e juntos explodiram num ataque de ansiedade que lhe prendeu a respiração e encheu os olhos de lágrimas. Peguei a mala dela, confortei-a, diminuímos o passo — mas não paramos. Eu levava dez quilos em cada mão, mais um tanto nas costas e o meu amor ao lado. Ela combatia os demónios dos seus nervos com a cabeça levantada. Podíamos perder, mas não íamos desistir. Chegamos ao portão de embarque, gritaram-nos “São Paulo?”, e eu gritei “São Paulo” de volta. Eu e a minha mulher entramos no avião, sentamo-nos ao lado um do outro e voamos.
Claro que ainda tivemos que esperar um dia pelas malas, porque tão pouco tempo não deu para elas irem de um avião para o outro. E claro que a companhia aérea ainda está a enrolar para pagar os dias que a minha mulher ficou descalça e com o cabelo molhado.
Mas, quando pensamos nos encontros de Dezembro, isso tudo parece tão pequenino.