Os sorrisos das mulheres

Era uma manhã de sábado típica para mim, com o café e os dois pães com manteiga e extrato de levedura que me permito nesse dia. Extrato de levedura (que os ingleses conhecem como “marmite” e os australianos como “vegemite”) não é para todos os gostos, eu sei, mas um colega descobriu recentemente uma marca brasileira . É um subproduto do fabrico de cerveja com bastante sódio e “umami”. 100% vegetal, mas com um sabor carnívoro que enche a boca de água.

Um prazer meio excêntrico, eu sei, e não é o meu único. Nas manhãs de fim de semana, acusando a idade, recebo a Folha em papel. Gosto de fazer as palavras cruzadas, de ler os cadernos do final para o início, como a minha mãe me ensinou, e de enviar excertos para amigos que possam ter interesse neles. Neste dia, chamou-me a atenção um artigo sobre a artista de Salvador Mayara Ferrão, que, cansada de ver fotos de pessoas negras com “olhares vazios, de desumanização e desesperança” em arquivos dos séculos 19 e 20, inventou o projeto “Álbuns de Desesquecimentos”, onde usa IA para criar imagens de mulheres negras e indígenas em cenas de amor e alegria.

Isso chamou-me muito a atenção. Mayara pega uma tecnologia com contornos perversos e inverte a sua polaridade. O instrumento hegemónico de apagamento torna-se uma arma, ou talvez uma seringa que injeta alegria no passado.

Entretanto, a minha mulher chegou da rua e disse que queria ir ao Museu de Arte Brasileira. Os meus pães já estavam comidos, o jornal lido. Descemos até à Tupi e caminhamos até à FAAP, onde fica o museu. O dia estava ensolarado, não muito quente, sem chuva: um sábado agradável de primavera. Chegando, encontramos a exposição “Ancestral: Afro-Américas”. Bem montada e interessante, com algumas peças imponentes. Chamam-me particularmente atenção as obras de Jayme Figura, Matheus Abu, Abdias do Nascimento. Dos estrangeiros, Jordan Casteeel, Simone Leigh, Nari Ward. Pelo meio, reparo em algumas fotografias. Poderiam ser? Eram mesmo. Olhando para mim da sua parede, estavam os Desesquecimentos de Mayara Ferrão.

São ainda mais interessantes ao vivo, porque fica claro como a artista cria um objeto de passado, em que a materialidade do suporte é necessária para entendê-lo plenamente. Como o meu café da manhã, talvez a IA não seja para todos os gostos, mas aqui, não só ela não é a protagonista, como ainda não tinha visto uma forma tão inteligente de utilizá-la enquanto instrumento expressivo. A questão sobre o falseamento da representação (“essas pessoas não existem”) é esvaziada, porque estes retratos não o são realmente: a relação principal da imagem não é com as (não-)pessoas representadas, mas com as pessoas do presente - conosco. Ou seja, é como se as fotos de Mayara Ferrão nos dessem a possibilidade de um passado melhor, que teria sido tão possível quanto hoje é possível inventá-lo. Ao revelar os sorrisos ocultos da História, Mayara Ferrão libera as mulheres negras e indígenas para sorrirem hoje.

Ao sair da exposição, lembrei-me de quando gravei a primeira temporada do programa B de Brasil, para o canal History, e de um comentário da historiadora Giovana Xavier a propósito da existência ou não de Maria Felipa, a famosa escravizada liberta de Itaparica que ajudou a expulsar os portugueses da Bahia: o que é “existir”?

A questão é menos ontológica do que epistemológica. Quantas fontes históricas não foram chamadas de “corretas” quando, na verdade, estavam apenas reproduzindo um raciocínio que sustentava uma autoridade instalada? Por que a História privilegiou as fontes escritas, como se elas fossem necessariamente mais verdadeiras do que as orais, assim perpetuando o domínio cultural de quem tinha acesso privilegiado à educação? Ao longo do tempo, quantas mentiras escritas nos chegaram em que acreditamos e quantas verdades ditas desconsideramos? Devemos imaginar que mulheres negras e indígenas nunca sorriram no século 19 porque não foram representadas sorrindo?

Esqueçam a IA. As imagens de Mayara Ferrão são muito mais verdadeiras do que muita foto que se vê por aí.