O que somos por dentro
Brillat-Savarin, um homem dos séculos 18 e 19 que soube viver muito bem, disse um dia «diz-me o que comes e dir-te-ei quem és». Sou tão esquecido de ter corpo que nem digo que viveria bem só com cabeça, porque “cabeça” já me parece um pouco corpo, mas, ainda assim, a frase parece-me muito acertada.
Consumir é fazer algo presente de fora para dentro de nós. Isso torna-se nós tanto quanto nós nos tornamos isso. De vez em quando, é interessante fazer o exercício: o que seria eu segundo Brillat-Savarin?
O que sou eu hoje? O que deixei entrar em mim? E também: o que me invadiu sem que eu pedisse?
Há combinações que só eu sou. Antes de tudo, os meus pais, claro. Os tecidos que em mim se transformam são o instantâneo de um encontro entre passado, presente e futuro, e o passado vem deles.
Sou também os pelos da minha gata e o cheiro da minha mulher, as plantas aqui de casa, os tijolos das paredes que furei para pendurar quadros. Tudo isso entrou em mim e continua a entrar pelo ar que respiro.
Mas existem também elementos que todos partilhamos. Por exemplo, hoje carregamos as cinzas dum mundo acabado de queimar. As fagulhas levantaram-se da terra, apagaram-se no céu e foram transportadas pelo vento até aos nossos narizes em vez das gotículas de água que antigamente ele nos trazia da Amazónia ou dos rios portugueses. Cheiramos as cinzas, e elas entraram em nós.
Há quatro anos, compramos máscaras que não gastamos, como se tivesse sido de propósito para as usarmos neste desastre. Usamo-las em Aveiro e em São Paulo, em Brasília e em Chaves. As partículas pairaram por dias, e logo saberemos todo o mal que elas nos vão causar — porque, segundo Brillat-Savarin, agora elas são nós, e nós somos elas. As sobras de um mundo queimado.
Hoje nós também somos microplásticos. Poliproplieno, que rima com antropoceno, que rima com veneno. Os pedaços soltam-se inocentes das garrafas de que bebemos, dos pneus dos carros que nos levam aonde precisamos ir, das embalagens de onde tiramos a comida. Entram em nós pelo nariz, tão pequenas que nem as sentimos. Instalam-se no nosso cérebro, pulmões, sexo, sangue, soltando a química que faz de nós, enfim, um pouco plásticos também.
Nós somos o que escolhemos, quer sozinhos quer em coletividade. O youtuber Joe Scott falou sobre isto e adicionou um complicador interessante: é fácil esquecermos, mas escolhemos no passado aquilo que nos polui hoje por muito boas razões, inclusive ecológicas.
Antes do plástico, vísceras de dezenas de milhares de boi eram necessárias para fabricar os componentes dum único dirigível. Quase extinguimos as baleias para iluminar as nossas cidades antes de descobrirmos o petróleo. Inventamos coisas para não destruirmos o mundo — e agora destruímos o mundo com elas, como se essa fosse a única constante possível.
O que podemos fazer? Até onde devemos reduzir, até onde nos podemos limitar?
Deveríamos exigir no trabalho, em todos os trabalhos, licença geral e remunerada nos dias em que os níveis de poluição atmosférica não permitirem sair de casa? Deveríamos pedir subsídios ao Estado para ares condicionados, desumidificadores e energia elétrica no verão? E a água, como faremos? Como protestaremos quando não tivermos mais o que beber?
Segundo Brillat-Savarin, hoje seremos menos azeite e estamos em vias de sermos menos chocolate, menos café e menos laranja.
Mas seríamos todos estrôncio-90, um elemento radioativo que entrou na água, e na erva, e no gado e, finalmente, nas pessoas depois de os testes atómicos secretos do governo dos EUA o terem introduzido na natureza. O estrôncio-90 comporta-se de forma semelhante ao cálcio, fixando-se nos nossos ossos com resiliência por dezenas de anos. Se o elemento for detetado num esqueleto desconhecido, sabemos que este foi enterrado depois de 1945.
Pensem nisso na próxima vez que vos disserem que estas coisas não importam. Importam tanto que todos nós carregamos a Era Atómica nos ossos. Incêndios, plástico, isótopos. Fogo, lixo, Hiroshima. Estão todos dentro de nós.