Estamos lynchados

David Lynch deixou-nos sozinhos com os nossos sonhos. E agora, o que fazemos com eles?

Li muita gente reagindo à morte dele dizendo que não lhe compreendia os filmes. A melhor forma de entender Lynch é como o pintor que ele nunca deixou de ser, e o tempo do filme como a sua tela. Um exemplo simples: num quadro, um artista pode colocar um elemento no topo para mostrar a sua superioridade. Mas e se o artista decidisse, por exemplo, misturar a ordem das falas num diálogo entre três coelhos — o que isso pode quer dizer? Ou dar pulos silenciosos entre o mundo dos sonhos e o real? Será que é para mostrar como eles se misturam, que o sonho também é real e que o real também é sonho?

E o filme, é real ou é sonho?

Lynch adorava Fellini, que tinha o costume de colocar um fundo de vento na trilha de áudio, uma brisa constante e onírica que parecia aumentar a escala da imagem até ao horizonte. Lynch tinha algo parecido, mas, no caso dele, era um rumor subterrâneo que podia ser lava, ou gás, ou alguma outra coisa das entranhas do mundo. Se o vento de Fellini nos levava para longe, o rumor de Lynch aproxima-nos do que há de mais tenebroso dentro de nós.

Digo “tenebroso”, mas lembro-me de ter visto Homem Elefante muito novo e com muito maravilhamento. Talvez nem tivesse dez anos. Contei isto à minha mulher e ela perguntou-me se não fiquei impressionado. Pelo contrário, considero-o um ótimo filme para ensinar crianças a não julgarem ninguém pela aparência.

Depois, vi Estrada Perdida na adolescência com amigos. Bateu-nos muito forte. Terá sido dos primeiros filmes que discuti a sério, durante horas.

Só entendi minimamente Mulholland Drive na segunda ou terceira vez. As “dez pistas” de Lynch para o filme ajudaram-me a perceber como sou distraído e os pormenores significativos que me tinham passado invisíveis. Hoje vejo filmes um pouco melhor por causa dele.

Vi Twin Peaks inteira três ou quatro vezes. É uma série que é uma novela sobre um mistério sobrenatural, primeiro, e que depois, obrigada a reinventar-se na 2ª temporada, simplesmente seguiu para a construção de uma mitologia esotérica sobre os Estados Unidos, tornando-se a grande espinha dorsal da obra do diretor. Um mundo dual, a luta entre o Bem e o Mal, duplos. E a bomba nuclear, evento primordial e totalitário que reorganizou o universo em todas as suas dimensões.

Lynch é o grande intérprete dos sonhos da América da segunda metade do século XX. Uma América tão profunda que, no fundo, todos a somos. Até a marca de tabaco que ele fumava se chamava Natural American Spirits. Depois de décadas e toneladas de cigarros, parou há uns dois anos, por causa de um enfisema que o obrigou a recolher-se em casa com uma garrafa de oxigénio. Saiu poucos dias antes de morrer, após os incêndios lhe terem piorado a respiração. A crise climática, outro evento capaz de reorganizar o universo.

E agora, Lynch, o que fazemos com os nossos sonhos?