Diário de gravação: segunda parte

(primeira parte aqui)

Dia 8 (10/05)
O dia todo na escadaria do Palácio Tiradentes. Muito texto para gravar, mas cumprimos o horário. Muita gente vem falar com o apresentador do documentário e mostrar o seu apreço. Ele agradece e sempre pede que doem o que puderem para o RS. Duas professoras da rede pública ficam com lágrimas nos olhos e dizem que, sem pessoas como ele, o trabalho delas seria muito difícil.

No fim do dia, fazemos uma entrevista incrível num lindo casarão da Pequena África. Acabamos a noite na Lapa, tomando cerveja e cachaça com sabor de jambu e trocando histórias.

Dia 9 (11/05)
Dormi nem muito nem pouco. Acordei bem. Gravamos no Largo do Boticário: bonito, mas talvez cenográfico demais. Depois, vamos para a praia do Flamengo, esse lugar incrível que, mais uma vez, me faz pensar no inacreditável milagre que é a simples existência de uma cidade no meio desta paisagem. Depois seguimos para o Cais do Valongo, lugar sombrio, malsão, ainda talvez habitado pelas presenças dos que por lá passaram. Um casal chileno aparece, estão confusos: “afinal, o que é a Pequena África? É um mercado?”. Eu disse: não, são as ruas em volta deste cais, onde, durante três décadas do século 19, desembarcou um milhão de escravizados africanos. O casal parece ficar um pouco chocado, não sei se pela história em si mesma, ou por um lugar com um passado tão pesado vir indicado no guia que lhes foi dado no aeroporto.

Comemos no Largo do Machado. O apresentador fala sobre os Tamoio, que perderam a guerra aliados aos franceses contra os Tupiniquim e os portugueses. Que mundo este, carregado de fantasmas e presenças silenciosas que nos observam de dentro de tocas esculpidas no tempo. Parece que no RS pararam de morrer, mas há abusos e saques. Passaremos todos por algo parecido um dia?

Avião noturno de volta para SP. Escrevo estas linhas no avião, sentindo saudades da minha mulher. Acho que amanhã mereço dormir.

Dia 10 (12/05)
Folga. Porém, atarefado. Não consegui dormir muito.

Dia 11 (13/05)
Primeiro dia da gravação com atores. Observo, anoto no roteiro impresso as alterações aos diálogos que sejam pelo menos um pouco substanciais e incluo a data de gravação no cabeçalho. Já em casa, escrevo tudo no roteiro de pós que está no Drive, marcando a verde os cabeçalhos das cenas gravadas e incluindo a data de gravação. Quando o faço, grifo o cabeçalho da cena. E assim vai acontecendo: a vida passando e o roteiro marcado de verde, para os editores se orientarem.

Dias 12 (14/05) e 13 (15/05)
Primeira folga dupla destas semanas, ainda que no primeiro dia tenha feito três calls. Penso: tenho comido pão na chapa com requeijão na entrada na padaria estes dias porque gostei da ideia após ter visto a minha colega pedindo numa das primeiras diárias. Até então, era apologista do requeijão na saída. Penso: no pão na chapa e noutras coisas mais, gosto de mudar.

Dias 14 a 20 (16-22/05)
As cenas com atores em estúdio. Não consigo escrever, porque os dias, sendo diferentes, são muito iguais. Saio de casa de manhã, entro no estúdio e fico nele até anoitecer, volto para casa, durmo: repetir. A novidade é uma espécie de rinite a chatear-me. Nunca tive isto, será uma reação incubada do Covid que tive há ano e meio? Alguma sensibilidade espicaçada no primeiro outono após parar de fumar? Ou uma reação ao tempo seco de São Paulo, ou à fumaça que foi usada em determinado dia para embelezar a cena? Haverá ainda alguns cacos de dias, ultimações, aperfeiçoamentos, mas o essencial é feito aqui. Discutimos o texto dos diálogos cena a cena, plano a plano. Se necessário, mudamos para o que parece mais natural e lógico. Perdemos alguma informação, ganhamos outras. Tentamos editar ainda antes de gravar.

O tanto que vamos fazendo sempre acaba compensando no que vamos perdendo. Cidades alagadas, parentes que se vão, uma casa queimada. Os dias deixam a sua marca em nós.

Tentamos dar sentido ao tempo: contamos histórias e fazemos documentários. Mas desconfio que o tempo não quer saber de nós para nada. Leio em algum lugar o título “Rio Grande do Sul vai construir quatro cidades provisórias” e pergunto-me quando é que “campo de refugiados” mudou de nome.

No último dia, fazemos uma pequena festa. Nada sofisticado, só o que é preciso: algumas cervejas, alguns salgados. Bebo, como e volto para casa. A minha mulher já dorme. Sento-me no sofá ao lado da minha gata e conto-lhe as novidades do dia. Será que um dia, antes de eu a adoptar, ela mordiscou um rato com os seus irmãos? Durmo pelo sofá.

Amanhã o apresentador volta para casa e, curioso, o aniversário de Bob Dylan é no dia seguinte. A hard rain’s a-gonna fall, não — já caiu.