Você conhece o shifting?

É uma moda nova do TikTok. Uma espécie de técnica de autohipnose em que os sujeitos se tentam transportar para realidades alternativas após preencherem um “script” com os detalhes da sua DR (“desired reality”, ou realidade desejada). Quanto mais detalhado o “script”, melhor.

Nunca ouvira falar sobre isto até semana passada, quando um amigo me enviou este vídeo. Superem a preguiça de clicar no link. Esse menino, Matheus Sodré, cometeu coisa que raramente vi nestes meus quase trinta anos passeando pela internet: uma reflexão interessante sobre um fenómeno interessante também.

Visitei as comunidades do shifting e me fascinou o modo como ele ecoa fenómenos culturais, políticos e de consumo dos últimos anos. A noção de multiversos e a pós-verdade de Trump. A introversão nascida durante as quarentenas, o Inception, a meditação transcendental. A realidade virtual, os universos ficcionais de séries e filmes de sucesso, até a moda do “journaling”.

Os shifters conversam muito nesses fóruns. Trocam e avaliam os diferentes métodos para transportar a sua consciência, partilham “scripts”, falam sobre suas experiências. É uma experiência mental exposta no maior palco de todos.

Como em tanta coisa na vida, a comunidade do shifting faz-se mais de desejo do que de experiência. Quem não shiftou escuta as histórias dos que shiftaram, mas como ter certeza de que elas são verdadeiras? Imagino as fofocas: “fulano na minha escola está falando que shiftou, mas eu não acredito. Como shiftou se, na mesma hora, ele estava postando stories do cachorro?”.

Estarei errado? Talvez sim, talvez não.

Perguntei a meus amigos o que achavam disto. Um achou que “shifting” parece nome novo para o conhecido fenómeno do Napoleão de hospício. Outro disse que era sinal de uma sociedade cada vez mais infantilizada. Outro ainda se lembrou do fascínio dos adolescentes tardios com a possibilidade de acessar estados alterados da consciência sem a necessidade de aditivo$.

Entendo os meus amigos, mas também acho que este fenómeno é muito revelador sobre o atual consumo de cultura e sobre o modo de ver das pessoas mais jovens. Todos os espectadores e leitores criam um mundo imaginário em cima do outro que lhes é dado, mas os shifters sistematizam o desejo de regressar. Eles cruzam o Rubicão da passividade do espectador; ao retornar, eles conseguem que a obra olhe de volta para eles.

Lembro o fim de As Ruínas Circulares, de Borges, quando o protagonista «com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando». Será que, um dia, um shifter será o sonho de outro? Enfim, divago.