Claro, escuro

A luz faltou no centro de São Paulo na segunda-feira da semana passada. Moro na região há muito tempo. Nunca vira um apagão tão grande, tão longo. Da Vila Buarque até à Consolação, milhares de pessoas ficaram 20 horas, 30 horas, dias sem luz. Para muitos, ela voltou e depois foi-se de novo. Esvoaçou, perdida. Comércios e empresas fecharam durante dias, ruas encheram-se de geradores a queimar combustível. Comida estragou e as bombas que puxam a água para os apartamentos dos prédios não funcionavam — então muita gente ficou sem água também. Um amigo soltou um palavrão de espanto num grupo de Whatsapp, admirado com a situação inaudita de os do centro estarmos a oferecer banhos quentes uns aos outros.

Eu tive sorte: o meu prédio só ficou às escuras durante breves três horas na quinta-feira. Nada a ver com as noites da minha infância em que trovejava em Monção e a luz esvoaçava, perdida, às vezes só voltando na manhã do dia seguinte.

A verdade é que não me incomodava . Acendíamos uma vela, sentávamo-nos na mesa da cozinha e o meu avô contava histórias. A minha avó ficava com um lenço na cabeça para cobrir os brincos, apavorada com os raios que podiam entrar pela janela, mas nunca nenhum entrou. Uma pena que, quando a luz voltava, ia tudo ver televisão e não se dizia mais nada. Como é possível que eu trabalhe com uma coisa tão pérfida? Talvez eu seja pérfido também.

A concessão da luz paulistana é dos italianos da Enel. Eles ganharam-na em leilão em 2018, poucos meses antes de a vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, e o seu motorista, Anderson Gomes, serem executados a tiros. Ela tomou quatro tiros, três na cabeça e um no pescoço. Ele, três nas costas. Eram os últimos meses do governo Temer e uma política, mulher, negra, periférica era assassinada, aparentemente por ter afrontado a teia que, no Rio de Janeiro, aliou política, polícia e crime organizado numa trama de dinheiro sujo e influência e de mãos que se lavam umas às outras sem nunca ficarem limpas da sujeira.

Nas semanas que se seguiram, a onda de ódio que se levantava no Brasil acusou a vereadora de estar envolvida com o tráfico de droga. Fotos de pessoas que não eram ela foram compartilhadas milhares de vezes em apps de mensagens para levantar a hipótese de que talvez a morte fosse merecida. Políticos de direita quebraram uma placa de rua com o nome dela e foram aplaudidos por uma turba. A treva do obscurantismo espalhou-se pelo país e, meses depois, chegou à presidência, ao Congresso, aos governos estaduais. A esperança de muitos esvoaçou-se-nos, perdida.

Há uns anos, os homens que empunharam as armas que mataram Marielle foram descobertos e presos. Agora eles denunciaram os mandantes do crime: dois irmãos políticos, que queriam construir um condomínio de luxo irregular ao qual Marielle se opunha, e o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que estava no cargo desde o dia anterior e articulara para que o homicídio não acontesse perto da Câmara de Vereadores, pois isso poderia retirar o caso do seu controle. No dia seguinte, este homem reuniu-se com as famílias das vítimas, prometeu que faria tudo para encontrar os assassinos.

Sempre devemos presumir inocência até prova em contrário. Se assim não fosse, como suportaríamos o fato de vivermos no mesmo mundo de tamanho escroque? Para qual círculo do inferno uma criatura destas merece ir?

Aliviamos um pouco a escuridão, é verdade. Ela esvoaçou — mas não se perdeu. Os anos maus deixaram-nos uma cicatriz, e isso lembra-me que tenho coisas a dizer sobre as últimas eleições portuguesas. Ficam para a semana que vem.

Por agora, só deixo o reparo que ainda não ouvi os neoliberalóides do costume falar sobre o caso da Enel. Talvez o provável fim da concessão faça com que eles parem de esgotar-nos a paciência com a ladainha de que tudo o que é privado é intrinsecamente melhor.

Mentira, quem é que eu quero enganar? Eles nunca vão parar de nos esgotar a paciência.