A galera do barulho
Não faz muito tempo, o alarme da farmácia disparou. Era meia-noite, mais ou menos. “Então isto no outro dia ficou a madrugada inteira a tocar e ainda não consertaram?” A minha mulher já tinha ido para a cama e não queria que ela acordasse. Levantei-me do sofá e fui lá ver.
Era impossível que o alarme estivesse quebrado. A farmácia abrira poucas semanas antes, o último rebento do festival de obras que tem sido o centro de São Paulo. A cidade toda dança no embalo das escavadeiras nas ruas, das lagartas nos terrenos, das furadeiras nas reformas. Viola caipira? O instrumento típico de São Paulo é a britadeira.
A propósito, a farmácia fica a dois números de mim e a sua construção foi rápida. Vão demorar bem mais para acabar o prédio que fica entre nós. São 15 andares cheios de 49m² divididos em dois dormitórios. Mudei-me no começo de 2021 e ele começou a ser construído pouco depois. Pelo menos tive uns seis meses de sossego.
Conheço o slogan, sei que São Paulo não para, mas às vezes bem que podia sossegar um pouco o facho. Acho que estou a ficar velho — ou, pelo menos, sem paciência. Cada vez aprecio mais as horas silenciosas da madrugada solitária, vocês também? Além disso, tenho reparado na forma como as pessoas tentam espremer o máximo de palavras em uma única frase antes de esgotarem a atenção de quem escuta. A pandemia deixou-nos o pânico de não sermos escutados. Por isso fazemos barulho?
O alarme ainda tocava quando saí do elevador. O porteiro da noite estava na recepção. “Acho que tentaram roubar a farmácia”, disse. Através do portão, vi a síndica do prédio da frente, com o celular na mão, olhando na direção do ruído. Fiquei curioso e saí.
Nem por acaso, estes dias encontrei a pesquisa de Felipe Trotta, professor universitário que escreve sobre música de uma perspectiva inesperada: enquanto incômodo, irritação, violência. Trotta fala sobre a música que nos impõe uma presença indesejada. «Ao impor o seu som, silencia-se o outro», diz ele no ensaio Violência sonora em viagens de ônibus, mas não esquece de também olhar para o lado de quem impõe: aquele que se sente marginalizado na vida cotidiana e que, «ao controlar o som do ônibus, [inventa] as relações e hierarquias de poder».
Qualquer morador da cidade entende aquilo de que Trotta está falando. A vida urbana é atraente pelos encontros que propicia, mas não há encontros sem encontrões. Ainda no outro dia, no ônibus, um homem sentado atrás de mim fez uma chamada de áudio para outro para combinar um serviço — e em viva-voz, para todo mundo ouvir. Conseguem adivinhar com o que ele trabalhava? Se falaram “construção”, acertaram. O homem no ônibus disse que queria construir uma churrasqueira no piso de cima “porque deus me falou em sonho”. O que o outro respondeu, eu não escutei. Aliás, nem sei como o homem escutou. Por que raio alguém faz uma chamada em viva-voz num ônibus? E por que deus está entrando nos sonhos das pessoas para falar sobre churrasqueiras? Talvez para eu poder escrever sobre isso.
Torto por linhas direitas, andei até à porta da farmácia. Na calçada, o guarda noturno tinha um rapaz quase adolescente ajoelhado aos seus pés. Sem dizer nada, apontei para o alarme. O guarda entendeu e, olhando o rapaz, falou com tranquilidade que “está tocando porque ele tentou roubar”. O rapaz não parecia ter sofrido violência, só tinha cara de quem jogou e perdeu. “E não vai parar?” “A central é que desliga”. Afastei-me, fazendo um gesto de “vamos ver então”.
O alarme calou-se pouco depois, e imaginei que um anjo em formato de padrão de calçada paulistana me vinha dar a unção de velho resmungão do centro. Mas os anjos paulistanos não costumam dar muita coisa de graça. Talvez por isso, hoje mesmo começou uma reforma no andar por baixo do meu. Escrevi este texto ao agradável ritmo de uma parede sendo derrubada por uma marreta.
Suspiremos e, se não os podemos vencer, juntemo-nos a eles (gritando).