A inteligência artificial de Ashton Kutcher

Pelo que tenho perguntado por aí, é mais provável que o mundo acabe por causa de burrice natural do que de inteligência artificial. Será que Ashton Kutcher concorda? Depois duma entrevista à Variety em que mostrou entusiasmo desmesurado com o Sora (o modelo de produção de vídeo da OpenAI), o ator e produtor foi semicancelado pelos profissionais do audiovisual.

Os arrazoados de Kutscher sobre a nova tecnologia parecem-me um pouco exagerados, mas não irrazoáveis. É legítimo perguntar “por que filmar um plano externo de uma casa quando posso criá-lo digitalmente por 100 dólares?". Esse plano parece simples, mas implica uma deslocação de equipe e de equipamento. Se só houver uma câmera, é preciso esperar para seguir com a ordem do dia. Se houver mais, uma unidade secundária tem que ser destacada para filmá-lo. Vai ser preciso aguardar até que o sol esteja no lugar certo e, mesmo assim, talvez seja preciso trazer a equipe de luz. No produto final, é possível que a imagem de externa nem seja do local onde os interiores foram gravados, mas de uma casa completamente diferente. Se for de um particular, talvez ele cobre pela autorização. E por aí fora. De repente, gastamos milhares de dólares, tivemos um trabalhão, e para quê? Para filmarmos alguns segundos do exterior de uma casa.

A IA consegue produzir este plano com custo baixo? Se sim, economicamente faria sentido usá-la. Artisticamente, não creio que seja grande compromisso. Mas isso afeta quem trabalha? Deveria haver um “adicional por IA” nos nossos contratos a partir de agora? Kutscher não diz, e isso entra na conta de quem fala sem se lembrar que acabaram de acontecer duas grandes greves em Hollywood. Não fazia falta nenhuma, por exemplo, dizer que a IA poderá acabar com a necessidade de dublês. Animação digital já tem essa capacidade, e não se faz porque fica horrível. É uma solução fácil, e o olho sabe. Boa sorte na próxima vez que tiver que fazer uma cena de ação, Ashton.

Não digo que a IA não deve ser discutida. A sua influência irá muito além do artístico, é necessário entender os seus limites e regulamentar o seu alcance. Mas acho que a pergunta talvez mais essencial de todas tem sido pouco feita nos debates. Afinal, por que nós vemos um filme? Ou lemos um livro, ou escutamos uma música? É preciso que pensemos nisso para entendermos se realmente existe o risco de a IA ocupar o lugar do humano na arte. Num vídeo recente, o músico Rick Beato disse que já não consegue distinguir uma canção criada por IA, mas essa canção compete com quais? Com aquelas sequências MIDI adornadas que enchem o vazio de elevadores, supermercados ou o tempo de espera em linhas de assistência ao cliente? Em 1998, algumas horas assistindo MTV fizeram Damon Albarn concluir que o meio musical estava tão esvaziado de substância que seria possível criar uma banda virtual — e essa foi a gênese dos Gorillaz, cujo sucesso é uma constante e irônica afirmação da sua sátira. Algumas décadas de Auto-Tune e compressão depois, a música para consumo em massa homogeneizou-se, reproduzindo os mesmos formatos e características de produção. Se músicas tecnicamente perfeitas criadas por IA são ameaça para criadores, isso talvez signifique que nos temos preocupado demais com perfeição técnica e pouco com o resto. Parafraseando o próprio Beato, nunca conseguiremos ser melhores robôs do que os robôs.

Hoje parece claro que a IA vai tornar-se o padrão da nossa interação com a tecnologia. Porém, a mudança do paradigma tecnológico não significa a sua usurpação do humano. Kutscher acha que a IA pode ser usada para a representação de cenas arriscadas, mas por que os vídeos que viralizam são de Tom Cruise fazendo as suas próprias proezas, e não do seu duplo digital? Creio que a resposta não será grande novidade: na perspectiva do receptor — o que vê, escuta, cheira, prova —, a arte não vale apenas pela superfície de suas formas, mas pela intenção que elas dão a entender e que revela uma determinada faceta do humano com a qual nos podemos conectar.

A IA provavelmente vai dominar a produção de música para salas de espera, mas dificilmente ocupará os palcos de bares. As canções atrevidas do canal Obscurest Vinyl são feitas com IA, mas aquilo que nos faz rir é a mente inusitada e humorística de quem as inventou. Fatboy Slim acabou de lançar o clipe de clipe de Role Model, em que usa fartamente a IA para comentar a cultura popular do século 20. Quando, há uns meses, a TLC anunciou Next Stop Paris (uma espécie de comédia romântica em IA para passar no canal FAST das suas televisões), roteiristas de todo mundo temeram pelos seus empregos até que abriram o vídeo e perceberam que, além da novidade tecnológica, a única coisa que poderá levar alguém a este tipo de obra é precisamente o autor. Ou seja, em princípio não tenho grande interesse por Next Stop Paris, mas talvez o tivesse se, após o título, viesse um written by Aaron Sorkin.

Vocês preferiam assistir um filme escrito por um humano, mas com atores e cenários criados por IA, ou um roteiro criado uma IA e filmado por atores reais em cenários reais? Qualquer que seja a resposta, eu aposto que vocês vão escolher com base na vossa relação preferida com pessoas. Por isso, acho que a frase final de Kutscher — «num mundo em que há menos olhos do que coisas para ver, um conteúdo vale o número de pessoas que querem vê-lo» — é muito ingênua. Mesmo no mundo pré-IA, o valor de um filme ou de uma série sempre foi medido considerando o número de pessoas que desejavam vê-lo. Se assim não fosse, não teríamos empresas de pesquisa de mercado.