Diário de gravação: primeira parte

Dia 1 (03/05)
A magia do audiovisual. Gravando no Cemitério da Consolação, rodeados de silêncio e tranquilidade enquanto preparamos o plano. Meia hora depois, o primeiro “ação” da temporada é proferido — e, de imediato, dois helicópteros passam com o seu ruído paralisante. Ao longo do dia, o documentário vai misticamente soltando todos os ruídos possíveis do mundo, a tal ponto que quase não conseguimos gravar as últimas cabeças. Porém, o último “corta” devolve a paz à cidade. A câmera é desligada, as obras param, as buzinas calam-se. A humanidade pode enfim descansar.

Dia 2 (04/05)
Centro de São Paulo. Alguns homens sentados no banco em frente a uma relojoaria guardada por um segurança com mais de setenta anos. Todos nos observam em silêncio. Respeito pelo trabalho alheio ou curiosidade pelos mistérios da imagem? Ninguém sabe como isto é feito. Às vezes, nem nós sabemos. Um homem mais curioso sorri enquanto olha as cenas se sucederem. No final, grita “vocês estão de parabéns”.

Dia 3 (05/05)
Uma casa na Lapa. Dia ensolarado, muita gente entrevistada. Ouço sobre propriedade e posse de terras no Brasil e sobre tempo cíclico, e não circular, aquele que admite o encontro de passado, presente e futuro num único momento. Ouço sobre o livro de guerra, onde estão as guerras que passaram, as que passam e as que passarão. A história está cheia de gente morta, muito mais do que gente viva. Enquanto falamos com um ambientalista, pássaros começam a chilrear. Saberão que, de certa forma, falamos sobre eles? Porto Alegre está inundada. O convidado pergunta “quando a água escoar daqui a um mês, o que vamos fazer?”. Chego a casa, e as notícias parecem dar a entender (ou parecem querer dar a entender) que a culpa é da geografia do rio, da bacia hídrica, quase um terrível acaso. Como se, há poucos meses, já não tivesse havido inundações. Como se não estivéssemos a ouvir sobre isto há tanto tempo. Sim, claro, a culpa é da bacia hídrica.

Dia 4 (06/05)
Durante o café, conversa sobre drogas e drogados. Também sobre Instagram e TikTok, e sobre o tamanho relativo do show da Madonna em Copacabana. Listo as coisas para viagem: higiene, roupa, acessórios. O Fantástico mostra as cheias de Porto Alegre. Descubro uma nova palavra: “solerte” (esperto, sagaz). Passamos a vida procurando o silêncio, mas lágrimas buzinam, cachorros cachorreiam; é assim que é, é assim que será.

Dia 5 (07/05)
Folga. Faço as malas e um PIX para o MST do RS. Será esta a nossa vida daqui em diante? Se acontecesse só de vez em quando, poderia ser chato. Se a frequência se mantiver, quantas cidades ficarão insustentáveis? Quantos metros de litoral vamos perder? Pecadilhos ontem, tragédias hoje. Ou, como diz a minha mãe, noites alegres, manhãs tristes.

Dia 6 (08/05)
Alguma vez acordei às 3h45? Não me lembro, é possível. O que sei que nunca aconteceu é acordar às 3h45, apanhar um avião às 7h, chegar ao Rio de Janeiro pouco depois das 8h, gravar várias cenas de um programa até ao fim de tarde e acabar o dia quase sem saber bem quem sou. É uma expressão ruim para descrever um grande cansaço, eu sei, mas, neste momento, não me lembro de mais nenhuma.

Dia 7 (09/05)
Durmo muito bem, mas acordo com dor de cabeça. Uma mistura de muito movimento e exaustão, talvez? Ou talvez não devesse ter deixado o ar condicionado ligado durante a noite. O Rio nem está tão quente assim.

Passamos o dia gravando na Floresta da Tijuca. Como é que a mesma humanidade que faz tanta coisa errada e feia pode inventar um lugar tão incrível? O guia mostra-nos um aro de metal espetado no tronco de uma árvore. Diz-nos que o casebre ao lado era provavelmente a senzala e que esse aro serviria para prender as pessoas a quem estavam sendo aplicados castigos.

O almoço atrasa, e começamos a perder energia. Voltamos para o hotel em clima de amuos, mas descubro um lugar de galetos perto e chamo o pessoal. Após acalmar a fome, caminhamos um pouco. Passamos por três meninas viradas para a porta de uma pequena mercearia. Moram no prédio ao lado, no que parece ser uma ocupação? As meninas olham fixamente a porta da mercearia e soltam gritinhos. Algo pulsa no chão da entrada: é um grupo de gatinhos filhotes, meia dúzia deles. Estranham o cadáver de um rato deitado no chão, provavelmente caçado pela mãe deles. A medo, dão pequenas mordidas nele, como que se desafiando a fazer algo proibido. Lá dentro, uma mulher jovem segura uma vassoura, mas parece estar com nojo demais para chegar perto. Íamos ajudar, mas um homem aparece do nada, pega a vassoura dela e assume a tarefa.

As coisas vão se encadeando. Acabamos a noite num pequeno lugar de cervejas artesanais perto do nosso hotel, que conhecemos quando gravamos a primeira temporada, há dois anos. Um homem de óculos e meio abobalhado passa a noite propondo assunto. Não para de beber, diz-nos repetidamente que a cerveja dele é muito melhor e mais cara do que a nossa e, a dada altura, anuncia que, na próxima semana, vai virar sócio do bar. Pouco depois, a empregada desmascara-o — “gente, ele não é dono, não!”. Rimos muito daquilo tudo.

(segunda parte aqui)